Recordando

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O ESTADO SEM CIDADÃO.


 Quando vejo uma matéria importante eu me sinto na obrigação em passar aos amigos leitores.


- SANTA CATARINA -
(e adjacências)
O ESTADO SEM CIDADÃO
Raul Longo

O velho dilema Estado x Cidadão há muito foi resolvido por regimes totalitários. No período da Ditadura Militar, por exemplo, quem se metesse a revindicar direitos mínimos de cidadania tomava porrada para se ajustar ao Estado e, dependendo da gravidade da revindicação ou em casos de reincidência, ia pra tortura e poderia ser suicidado ou desaparecido.
Na época isso ocorreu em todos os estados da Federação. Hoje só é comum nos governados pelos remanescentes daqueles ideais de Estado sem Cidadãos para incomodar, conforme pôde verificar um meu vizinho de origem alemã, mas há uma década naturalizado cidadão brasileiro.
Traumatizado pelo totalitarismo do regime soviético imposto à boa parte de seu país após a Segunda Guerra, compreensivelmente o vizinho se indispõe àquela mal fadada experiência, confundindo-a  com o comunismo proposto por seu patrício Karl Marx. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas é como antipatizante ao comunismo que se estabeleceu na capital de Santa Catarina, não havendo portanto porque imputar seu relato como má vontade às elites econômicas brasileiras, de quais estados venham ou estejam.
Técnico em saneamento montou empresa especializada em implantação de inovações no setor. Tanto adapta as desenvolvidas em sua terra natal como também lá tornou reconhecidas as desenvolvidas por sua equipe brasileira. Sua empresa atende diversos estados do Brasil e populações de outros países da América Latina, mantendo cerca de 50 famílias de seus empregados catarinenses e pagando todos os impostos devidos ao Estado.
Mas neste final de semana, sem embarcar em nenhum avião ou transatlântico, o vizinho fez uma longa viagem de retorno à sua terra natal. E foi viagem a um tempo ainda anterior ao da Alemanha Oriental que talvez nunca tenha conhecido enquanto a cidade onde nasceu era dividida por um muro.
Retornou aos tempos em que o Estado Nazista tratava os cidadãos de seu país com a mesma truculência com que foi recepcionado às portas do muro que limita um luxuoso condomínio deste bairro do Sambaqui, em Florianópolis.
O condomínio foi construído para alguns integrantes da elite da sociedade paranaense há coisa de 5 anos atrás, numa área de preservação permanente que se inclui ao complexo ecossistêmico de reserva ambiental administrada pelo IBAMA, órgão da República Federativa do Brasil.
O Ministério Público bem embargou a obra por alguns meses e, então, se comentava incluir as investigações da Operação Moeda Verde da Polícia Federal que em 2007 levou a perda de mandato de vereadores e secretários de estado e municipais. Verdade ou boato o fato é que se mantiveram os empreendimentos que motivaram àquelas investigações e o condomínio lá está com sua grande piscina à beira do mar e delimitações na praia por boias que sinalizam a entrada e saída dos Jet Ski, ou “Vespas D’Água” no vocabulário dos pescadores que tiveram seus ranchos derrubados para não atrapalhar o lazer da elite do Estado do Paraná que preteriu a Ilha do Mel por preferência à Praia do Toló.
O saudoso Seu Toló foi meu amigo e a praia herdou seu nome por ter sido o primeiro pescador a levantar um rancho naquela praia deserta até 5 anos atrás. Entra governo e sai governo, mas de lá pra cá Santa Catarina cada vez mais se reafirma como um Estado sem Cidadão, confirmado pelo vizinho alemão neste último domingo durante a realização do matrimônio dos filhos de duas famílias proprietárias de unidades daquele condomínio da elite paraense.
Uma chiqueria! Teve até helicóptero sobrevoando a Igreja da Nossa Senhora das Necessidades no vizinho bairro de Santo Antônio de Lisboa, despejando kgs e kgs de rosas brancas que o vento levou para Iemanjá, a noiva de todos os pescadores.
Além da involuntária homenagem à orixá, esta via única que por cerca de 6 kms se estende desde à Igreja até o mangue do Rio Ratones onde se instala a tal reserva federal, foi ocupada por luxuosos automóveis importados. Entre eles o de Beto Richa, o governador do Estado do Paraná pelo PSDB. Claro que devidamente escoltado.
Tudo, absolutamente tudo, dos móveis aos canapés, foi trazido de lá. E durante a semana nosso pequeno bairro recebeu uma legião de trabalhadores paranaenses, merecedores da confiança dos familiares dos nubentes para o preparo da grande festa à qual também se contratou um exército de leões de chácara para garantir a segurança dos convidados. Motivo pelo qual exigiram a identificação de moradores obrigados a passar à frente do condomínio para seguir pelos 2 kms adiante em busca de suas residências naquela via única e até então confundida como pública.
Mas o ponto alto da solenidade matrimonial se deu no início da noite através de uma música estentórica que incomodou o pretenso cidadão brasileiro de origem alemã.
Lá pelo início da madrugada ele estacionou seu carro à frente dos portentosos portais do condomínio e com o jeitão contemporizador e civilizado que o tem distinguido entre a vizinhança, explicou que precisava dormir para trabalhar no dia seguinte, solicitando que se diminuísse o volume do som.


Os seguranças que o recepcionaram informaram que os promotores da festa tinham autorização oficial para a realização do evento no volume que bem entendessem até as horas que quisessem. O cidadão conhece a existência de leis municipais, estaduais e federais que coíbem a perturbação da ordem e tranquilidade pública. E conhece através dos avisos pregados na mesma praia onde se inscrevem as penalidades previstas contra sons automotivos que em quaisquer das 24 horas do dia incomodem aqueles condôminos,
De nada adiantou os números das leis ali divulgados, a 10 metros da frente do condomínio. Os seguranças apenas ordenaram que o cidadão retirasse o carro do portal.
Equivocado, o alemão/catarinense pediu para primeiro ver o documento que oficializaria o direito da transgressão da lei. Os seguranças insistiram, a teimosia germânica e cidadã também insistiu garantindo que só sairia depois de conferir a autorização. Demorou pouco o impasse debelado pelo argumento de um “armário” daqueles ao torcer o braço do empresário para trás de suas costas. O enfiou adentro do próprio carro e aconselhou que saísse dali para não piorar as coisas.
O alemão é jovem, não viveu os tempos do totalitarismo nazista, mas sem dúvida herdou pela memória ancestral o terror à Gestapo que o aconselhou a voltar para casa de onde ligou para a Polícia Militar para denunciar a agressão sofrida e solicitar o apoio dos serviços públicos mantidos pelos impostos pagos por sua empresa e seus empregados. Mas de lá ordenaram que no dia seguinte prestasse queixa à Polícia Civil. Explicou que precisava dormir naquela noite. Por fim, antes de insistir por sua cidadania foi convencido pela própria memória evocando ancestrais lembranças da SS.
Conclusão: o cidadão e todos os vizinhos ficaram sem dormir até o final da festa, lá pelas 6 horas da manhã.
E hoje, exatamente agora, os noticiários informam a suspensão de duas das maiores importantes festas desta capital de Santa Catarina: a FENAOSTRA, que promove nacional e internacionalmente uma das mais importantes fontes de recursos econômicos para o estado: a ostreicultura. E o Carnaval, que promove o turismo.
Alguém que não faço questão de lembrar quem tenha sido nem posso imaginar em que se baseou para me julgar um bêbado por ter revelado a anulação de meu voto no segundo turno da última eleição à prefeitura desta capital; neste ano já não poderá incorrer nas mesmas ilações para acusar a nenhum Cidadão dessa cidade durante as comemorações destas festas, pois não poderão acontecer porque o dinheiro público que as financiaria foi gasto na campanha política derrotada para sucessão do atual prefeito.
Por outro lado, para o grupo do candidato vitorioso e apoiado por ecolóides do PSOL que se revindicam “bem atentos”, isso de cidadania também é mito, conforme comprovado pelas razões que provocaram a Operação Moeda Verde, durante o governo do hoje Senador Luís Henrique da Silveira que, ainda como governador, foi o primeiro a reivindicar a redução de áreas de matas ciliares estabelecidas pelo código florestal.
Na época Luís Henrique era aliado ao atual prefeito Dário Berger, a quem trouxe do PSDB para o PMDB, na última eleição derrotado pelo PSD que foi DEM ainda há pouco, mas antes era o PFL das origens políticas de Berger que, como Amin, do PP, oscila entre tempos de aliança e de oposição a Bornhausen.
Ambos os candidatos ao segundo turno desta última campanha, vencedor e vencido, já integraram governos e administrações sob o controle do mesmo grupo que através de casamentos e divórcios de letras de siglas partidárias, em Santa Catarina há décadas ajusta Cidadãos ao Estado para solucionar dilemas sócio/políticos, conforme relatado e analisado por Fernando Evangelista na matéria que recomendaria ao vizinho alemão para que possa entender como retornou pelo túnel do tempo a quando o país onde nasceu negava a cidadania de seus pais e avós:    
  Florianópolis: Sob ataque e sem controle
Por Fernando Evangelista.
Até a noite de segunda-feira, 19 novembro, os números dos ataques criminosos em Santa Catarina eram os seguintes: 27 ônibus incendiados, 12 carros destruídos e 16 danificados, 10 ocorrências de tiros contra órgãos da Segurança Pública, 48 suspeitos presos e três pessoas mortas.  Foram 65 ataques em apenas seis dias.
Diante de tanta violência, o mais assustador é a flagrante falta de preparo das forças de segurança. Não há uma central de inteligência digna deste nome. Não há preocupação para se entender, com atenção e responsabilidade, as razões dos atentados iniciados na madrugada de 12 de novembro.


As primeiras evidências indicam que as ordens partiram da Penitenciária de São Pedro de Alcântara, localizada a 32 quilômetros da Capital, e seriam motivadas pelas torturas praticadas por policiais contra os presos.

Perdidos na noite
Após os primeiros ônibus queimados, o governador Raimundo Colombo (PSD) classificou a situação como “atos isolados” e garantiu que estava “tudo sob controle”, descartando ajuda do Governo Federal. Algumas madrugadas depois, com a polícia levando um baile dos bandidos, o discurso oficial já admitia tratar-se de ações coordenadas e amplas.
Questionado por uma repórter do Diário Catarinense sobre a mudança de opinião, o governador disse: “passou o susto”.
E é este o problema: as ações de segurança são sempre reações, pensadas de susto em susto. E no meio do caos vai a população, de terço nas mãos, rezando para que nenhuma bala perdida cruze seu caminho.

Dados da incompetência
Santa Catarina é o Estado brasileiro onde mais cresce o número de homicídios. De acordo com o Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública, divulgado no começo deste mês, os assassinatos no Estado aumentaram 44,8% em comparação ao ano anterior. São 11,7 homicídios por 100 mil habitantes.
A Organização Mundial de Saúde considera 10 homicídios por 100 mil habitantes como o máximo aceitável. Acima disso, o problema é epidêmico. Onde vamos parar?
“Garantir a segurança total das pessoas, só Deus”, justificou o coronel Nazareno Marcineiro, comandante da PM catarinense, em entrevista à RBS TV. Obviamente, ninguém pode exigir do coronel ou do Secretário de Segurança Pública, César Grubba, segurança total. Mas se exige – porque é um direito – que o Estado cumpra seu dever. Como ele não cumpre, haja reza.
Importante funcionário da área da segurança, em entrevista à rádio CBN, afirmou que os métodos de repressão utilizados contra presos eram os mesmos utilizados contra manifestantes e grevistas. E a pergunta que deveria ser feita é: mas, afinal, como são tratados os movimentos sociais em Santa Catarina?

Dois exemplos
Em 31 de maio de 2005, durante as manifestações contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, o cinegrafista Alex Antunes flagrou um policial militar espancando um estudante em plena Beira-Mar Norte, região nobre de Florianópolis. A cena correu o Brasil e venceu o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos daquele ano. O policial fora da lei foi promovido.

Exatamente cinco anos depois, em 31 de maio de 2010, a Polícia Militar invadiu a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), em Florianópolis, para prender estudantes que protestavam contra o aumento da tarifa.

Com armas de choque e spray de pimenta, o Grupo de Resposta Tática (GRT) entrou no Campus, agredindo quem lhe cruzasse o caminho. Alguns estudantes foram detidos. Quem ousou registrar em vídeo a invasão também foi atingido pelos choques e ameaçado pelos militares.

O então Secretário Estadual de Segurança Pública, André Luis Mendes da Silveira, em entrevista à jornalista Juliana Kroeger, analisou a ação da PM de maneira bastante original: “Os choques são justificáveis para conter movimentos sociais porque é melhor levar um choque do que uma paulada de cassetete na cabeça, que pode causar um traumatismo craniano”.

Na ocasião, o Tenente-Coronel Newton Ramlow, um dos homens encarregados pelo governador para acabar com a recente onda de ataques, também questionado sobre as denúncias de abuso de poder contra estudantes, afirmou: “Isso é uma lição, assim como o pai dá uma palmada na bunda da criança. Fizemos isso pra ver se eles (os estudantes) se tocam”.

Torturas
A Penitenciária de São Pedro de Alcântara, pivô da atual crise, foi notícia nacional em 2009, quando o Fantástico divulgou cenas horripilantes de tortura. O diretor foi exonerado, mas os agentes prisionais envolvidos não perderam o emprego. Ou seja, continuaram lá, provavelmente agindo da mesma maneira.
Um ano depois, também na Grande Florianópolis, quem virou notícia foi o Centro Educacional São Lucas. Descobriu-se no local um “porão de torturas”, onde jovens infratores eram submetidos a choques elétricos. Até 2007, cinco menores morriam por ano dentro da Instituição. “Suicídio”, justificavam as autoridades. A Justiça ordenou que o Centro fosse interditado e em seguida demolido.

Cesare Beccaria, pensador milanês, um dos pais do Direito Penal moderno, escreveu: “a tortura é o meio mais seguro de absolver os criminosos robustos e condenar fracos inocentes”.  Sua obra Dos Delitos e das Penas, que influenciou a legislação de vários países, foi publicada em 1764.
A ONU, em 1948, estabeleceu que a tortura é uma grave violação dos Direitos Humanos. Está em nossa Constituição, está na Declaração Universal dos Direitos do Homem: não há justificativa para a tortura. Um país que se considera civilizado não pode aceitar esse tipo de crime. Uma população que exige paz tem obrigação moral de se insurgir contra tais práticas.

Escola do ódio
A ideia de que se combate a barbárie com mais barbárie não funciona. A Lei de Talião, do “olho por olho, dente por dente”, é escancaradamente ineficaz, além de perigosa. Mas em situações como esta, apoiados por uma classe média egoísta e alienada, os fanáticos sedentos de sangue e vingança saem do armário, estimulando aquilo que dizem combater.
Se alguém nutre alguma dúvida sobre o tratamento dispensando aos presos, pergunte ao Delegado Renato Hendges. Ele afirmou à rádio CBN: “a culpa por esta situação é do sistema prisional de Santa Catarina, superlotado e onde seres humanos são tratados como bichos”. Mais ou menos o que disse o Ministro da Justiça há alguns dias.

As condições degradantes das prisões, aliada à punição vingativa dos agentes do Estado  contra o preso, têm e terão reflexos para a sociedade. A fúria acumulada pela humilhação física e psicológica vai, cedo ou tarde, sobrar para alguém. O diabo é que sobra quase sempre para quem não têm nada com isso.
Sobra, inclusive, para o policial militar que precisa obedecer a chefes incompetentes e enfrentar bandidos mais bem armados do que ele. Se o Governo estivesse realmente empenhado em melhorar a segurança das pessoas, a primeira coisa a ser feita seria punir os militares que agem fora da lei e oferecer um salário digno aos policiais da base da hierarquia.

Outra medida seria aumentar o efetivo da PM. Como revelam os presidentes da Associação dos Oficiais da Polícia Militar, coronel Harry Schauffert, e dos Praças, deputado Amauri Soares (PDT), Santa Catarina tem, hoje, menos policiais do que tinha na década de 1980.

Pra lá de Bagdá
Estive no Iraque em junho de 2003, pouco depois da invasão norte-americana, e uma das primeiras pessoas que entrevistei foi um engenheiro civil, sujeito simpático e inteligente. Estávamos no centro de Bagdá, rodeados de soldados, tanques e helicópteros. No fim da entrevista, ele quis saber de onde eu era:
- Do Brasil – digo.
E então ele me pega pelo braço e, com sincera preocupação, pergunta:
- Mas você não tem medo de morar no Brasil? Não é muito violento?
“Pelas barbas do profeta”, eu penso, “estamos pior do que imaginava”. Se um iraquiano mostra-se preocupado com a nossa segurança é porque a coisa está realmente feia.
Esse fato sempre me pareceu engraçado, quase uma piada. Agora não parece mais. A preocupação do iraquiano começa a fazer todo sentido.

Fernando Evangelista, jornalista, é colunista do blog Nota de Rodapé. Os flagrantes de violência policial e as declarações estapafúrdias do Secretário e do Comandante estão no documentário Impasse, disponível gratuitamente na internet. (http://vimeo.com/35687989). Veja o trailer: http://vimeo.com/35687989.

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